sexta-feira, 9 de julho de 2010

Post Gigante - parte 1

Como um bom adepto da procrastinação acadêmica, adiei até o último momento a escrita deste post. Pensar escolhas é algo complicado, e implicar-se complica mais ainda – talvez esta a razão pra demora. Enquanto disciplina, a Análise do Vocacional nos convocou o tempo todo a colocar em análise o processo de escolhas – não somente a escolha profissional, mas qualquer escolha que um sujeito faz diante possibilidades várias. Ponto nodal para se fazer isso é a concepção de sujeito em que o curso se embasa: não se trata do sujeito clássico com uma essência a ser desvelada, mas de um agenciamento coletivo de enunciação. Algo difícil de imaginar e que produziu as mais variadas discussões durante a disciplina, em parte devido ao não-embasamento teórico suficiente para dar conta do que é isso em termos práticos.

Mas afinal de contas, o que é um “agenciamento coletivo de enunciação”? Iniciamos o curso com Guattari e Rolnik [1] para entender isso. Os autores propõem a contraposição da idéia tradicional da filosofia e das ciências humanas, que entende o sujeito como sendo algo do domínio de uma suposta natureza humana - i.e., o sujeito tem um núcleo, uma base, uma essência que precisa ser conhecida, investigada e, a partir dessa essência, pode-se conhecer seus comportamentos, suas atitudes, seus porquês, etc. -, para a idéia de uma subjetividade de natureza industrial, maquínica - ou seja, essencialmente fabricada, modelada, recebida, consumida: assim como se fabrica leite em forma de leite condensado, com todas as moléculas que lhe são acrescentadas, injetam-se representações nas mães, nas crianças etc. como parte do processo de produção subjetiva. Sem pensar o sujeito como produto de uma natureza, o que está presente na produção de sujeitos?, i.e., como se organizam subjetividades? Segundo os autores, há grandes agenciamentos sociais que se coordenam e modificam algo, produzindo subjetividade. O destaque é na produção (na transformação, na verdade), e não na subjetividade; no processo, que envolve várias partes organizadas. Para eles, a subjetividade não é passível de totalização ou de centralização no indivíduo. Uma coisa é a individuação do corpo. Outra é a multiplicidade dos agenciamentos da subjetivação: a subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do social; ela está em circulação nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos; ela é essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares.

Partindo desse ponto, a disciplina seguiu a linha de desconstrução da noção de infância como algo natural e universal, como estando cristalizada em uma estrutura temporal. Utilizou-se o pensamento de Ariès [2], o qual traça um panorama histórico das representações artísticas das crianças, partindo da miniaturização dos adultos, típicas dos séc. XII-XIII, na Idade Média. Ele aponta que, até por volta do séc. XII, a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la, sendo provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo. Até o fim do séc. XIII não existem crianças caracterizadas por uma expressão particular, e sim homens de tamanho reduzido. Isso faz pensar que no domínio da vida real, e não mais apenas no de uma transposição estética, a infância era um período de transição, logo ultrapassado, e cuja lembrança também era logo perdida. Ariès continua, dizendo que nos séc. XV e XVI, as pinturas não se consagravam à descrição exclusiva da infância, mas sugerem que na vida cotidiana as crianças estavam misturadas com os adultos, e toda reunião para o trabalho, o passeio ou o jogo reunia crianças e adultos. A partir daí, pode-se discutir como que a concepção de infância que temos hoje é algo construído sócio-historicamente, não sendo natural. O “sentimento de infância”, como um modo de encarar as crianças, e a “infância” como fase da vida independente das outras (adolescência, juventude e idade adulta) são bastante recentes e contemporâneas ao surgimento da família e da própria escola que, segundo Ariès, “retiraram juntos a criança da sociedade dos adultos”. Isso porque, na Idade Média, a indiferenciação entre as categorias das “idades da vida” produzia quase um total descaso com as crianças, tanto no que se refere à educação, quanto à saúde e mesmo ao afeto de que poderiam ser depositárias. Nesse sentido pôde-se chegar à discussão de quais são as categorias de organização que nos são impostas: infância é uma delas, dentre milhares de outras.

A matéria percorreu o caminho do questionamento acerca dessas categorias de organização para poder pensar na orientação profissional - sendo a profissão entendida (e questionada, claro) também como uma grande categoria de organização que nos é imposta. Sendo a escolha de uma profissão algo atávico, basta desvelar da melhor maneira possível a escolha certa - e daí tem-se todo o fundamento para as práticas de orientação vocacional. Sparta [3] nos mostra como a orientação profissional pôde ser desenvolvida no Brasil. Parte da Europa do séc. XX, na qual a orientação profissional nasce como uma prática diretamente ligada à lógica industrial, com o objetivo claro de evitar acidentes de trabalho (trabalhadores inaptos não poderiam realizar determinadas atividades; seria preciso a seleção de um homem certo para o cargo certo). Passa pela emergência da Psicologia Diferencial e da Psicometria, que influenciaram (e ainda influenciam) grandemente a prática da orientação profissional, através dos testes de inteligência, aptidões, habilidades etc. Nesse momento, a orientação passa a ser “um processo fortemente diretivo, em que o orientador tinha como objetivos fazer diagnósticos e prognósticos do orientando e, com base nesses procedimentos, indicar ao mesmo profissões ou ocupações apropriadas” (p.2). Como coloca a autora, a orientação profissional no Brasil nasce imersa no paradigma psicométrico, tendo como base essa ideia de que o processo de orientação é diretivo, sendo papel do orientador indicar o caminho certo a ser seguido pelo orientando, a partir de testes.

É nesse contexto que se inseriu a crítica de Patto [4] à razão psicométrica. A autora coloca que o exame psicológico, como regra, acaba por justificar cientificamente, i.e., pretensamente de forma isenta e objetiva, a desigualdade e a exclusão, uma vez que ignoram a dimensão política das afirmações que são feitas e se esgotam no plano das diferenças individuais. Diz que discutir o exame psicológico não é uma questão de pôr em confronto opiniões pessoais, mas se trata de uma discussão muito mais ampla que diz respeito à própria concepção de ciência e a filiação da Psicologia a esse modelo: é necessário questionar essa Psicologia que está a serviço da criação de instrumentos para fins de avaliação e classificação de indivíduos. Há toda uma dimensão política que não pode ser ignorada sob o pretexto da isenção científica. É nesse sentido que Abreu e Coimbra [5] vêm problematizar a separação entre clínica e política – se entende-se a clínica enquanto “prática micropolítica engajada no processo revolucionário operado pelas forças desejantes” e a política como “expressão de forças coletivas que, ao permear a vida, produzem os humanos dessa ou daquela maneira”, a separação entre as duas é vista como uma tentativa de retirar do humano sua “potência crítico-inventiva de criação de muitas maneiras de existir, pensar, agir, perceber, sentir e, enfim, viver”. Não é possível então, repete-se, ignorar a dimensão política do exame psicológico sob o pretexto da isenção científica, uma vez que tal prática se constitui enquanto uma técnica de poder que atua na formatação do homem baseando-se nas exigências de uma nova configuração das forças sociais, o que politiza toda e qualquer prática, por mais pretensamente isenta que possa se afirmar. É nesse ínterim que as autoras afirmam “que toda clínica é, a um só tempo, produto e produção de uma certa política de subjetivação”.

São esses pressupostos que baseiam toda a construção da proposta de uma Análise do Vocacional, em contraposição a uma Orientação. Tal proposta será objeto da segunda parte deste post.


[1] GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: Cartografias do Desejo. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 33-61.

[2] ARIÈS, P. O sentimento da infância. In: História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981. p. 29-164.

[3] SPARTA, M. O desenvolvimento da orientação profissional no Brasil. Revista Brasileira de Orientação Profissional, v. 4, n. 1/2, p. 1-11, 2003.

[4] PATTO, M.H.S. Para uma crítica da razão psicométrica. Psicologia USP, v. 8, n. 1, 1997.

[5] ABREU, A.M.R.M.; COIMBRA, C.M.B. Quando a clínica se encontra com a política. In: MACIEL JÚNIOR, A.; KUPERMANN, D.; TEDESCO, S. (Orgs.). Polifonias: Clínica, Política e Criação. Rio de Janeiro: Contra-Capa, 2005.


André Luiz Vale.

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