terça-feira, 25 de maio de 2010

Critérios, finitude e outras coisas mais

Após a penúltima aula de Análise do Vocacional, nós estivemos discutindo certos pontos da argumentação que não nos pareceram muito claros e resolvemos postar um esboço de algumas das interrogações suscitadas aqui.
Primeiramente, ficamos nos perguntando se todos os critérios que embasam uma escolha podem ser traduzidos em palavras ou explicitados. Pois nos parece que existe um imenso universo de critérios que são impossíveis de serem expressos (até para nós mesmos) por idéias claras e distintas, por não serem da ordem do "dizível" ou do racional, mas sim da ordem dos afetos e das intuições. Observamos que muitos dos critérios que nos orientam são de natureza imprecisa, indeterminada, e habitam uma zona nebulosa entre o que cabe em palavras, e o que insiste em escapar. Dessa forma, só poderíamos experimentá-los como um sentimento vago e delicado, que mal se consegue discernir, e que, no entanto, pode ser decisivo para nossas escolhas. É o caso, por exemplo, do critério que empregamos para escolher determinada pessoa na boate às vezes: é um sentimento ambíguo de um certo charme contido da pessoa, ou de uma atração misteriosa, um olhar indefinível. Critérios estes que, aliás, não estavam estabelecidos de antemão, e portanto não poderiam ser trazidos à tona antes mesmo da escolha. Então, nos parece que a abordagem que está se avançando em sala de aula parte do pressuposto implícito de que critérios de escolha são sempre racionais ou passíveis de serem postos em palavras e explicitados. Essa questão nos lembra uma passagem brilhante de Clarice Lispector, em Perto do Coração Selvagem:

“É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto, como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo."

Além disso, parece que determinadas escolhas envolvem uma complexidade maior que a simples decisão por um sabor de sorvete, visto que, não gostando de um sabor, pode-se sempre comprar outro. Enquanto isso, não se pode trocar de faculdade indefinidamente, por exemplo, uma vez que se impõe aí uma série de constrangimentos concretos e, no limite, uma interdição fundamental, que é a morte, a finitude, a necessidade de conferir um sentido à vida, da qual decorre precisamente a urgência de fazer o que consideramos como o melhor uso de nosso tempo. Desse modo, não é de todo estranho que a gente experimente uma faculdade que se abandona com decepção, um namoro de anos que se rompe sem que sequer saibamos por quê, um projeto do qual se é levado a desistir após tanto investimento, como um desperdício vão de nosso tempo. Esses questionamentos nos remetem a uma passagem de Por Uma Moral de Ambigüidade, da Simone de Beauvoir:

"Em face de um obstáculo impossível de ser transposto, a teimosia é estúpida: se me obstino a bater com o punho contra um muro inabalável, minha liberdade se esgota nesse gesto inútil sem conseguir dar a si um conteúdo; ela se degrada em contingência vã. Entretanto, há poucas virtudes tão tristes quanto a resignação: ela transforma em fantasmas, em devaneios contingentes, projetos que primeiramente se haviam constituído como vontade e como liberdade. Um jovem desejou viver uma vida feliz, ou útil, ou gloriosa; se o homem que ele se tornou olha com uma indiferença desenganada essas tentativas abortadas de sua adolescência, ei-las para sempre petrificadas no passado defunto. Quando um esforço fracassa, declaramos com amargura que perdemos nosso tempo, desperdiçamos nossas forças; o fracasso condena toda a porção de nós mesmos que havíamos engajado nesse esforço. É para escapar a esse dilema que os estóicos pregaram a indiferença. Poderíamos, com efeito, afirmar nossa liberdade contra toda coação se consentíssemos renunciar à singularidade de nossos projetos: se uma porta se recusa a abrir-se, aceitamos não abri-la, e ei-nos livres. Mas assim só conseguimos salvar uma noção abstrata de liberdade, esvaziamo-la de todo conteúdo e de toda verdade: o poder do homem deixa de ser limitado porque se anula. É a singularidade do projeto que determina a limitação do poder; mas também é ela que dá ao projeto seu conteúdo e que lhe permite fundar-se. Há pessoas em quem a idéia de fracasso inspira um tal horror que elas evitam querer o que quer que seja: mas ninguém pensaria em considerar essa passividade morna como o triunfo da liberdade." (p. 29-30). (Os dois parágrafos seguintes a este nos parecem igualmente fundamentais para a discussão, mas achamos melhor publicá-los aqui outra hora, se for o caso.)


Felipe Hautequestt e Veronica Gurgel.

6 comentários:

  1. Com certeza uma pessoa pode experimentar uma escolha tomada que tenham implicações não esperadas com angústia e decepção. Por exemplo, quando um sujeito ingressa em um curso universitário e se descobre detestando o mesmo. Isto pode ser tomado apressadamente como uma perda de tempo. Entretanto, considero que pode ser um trabalho interessante para o psicólogo auxiliar o sujeito a validar a própria experiência. Quais aprendizados adviram? Como a vivência da situação o transformou? O que foi bom?
    Pode ser que ainda assim o sujeito considere ter se tratado de uma perda de tempo. Se é esta a sua realidade psíquica, realmente foi um desperdício. Mas e então? As vivências e escolhas já o constituem. Como se descolar delas? Vemo-nos diante de uma impossibilidade.

    A partir da angústia de não se ser o que se gostaria, pode-se abrir um campo de outras possibilidades de escolha e outros desejos podem ser produzidos. A escolha geradora de frustração pode funcionar como um mal-entendido promissor, aquele que “cria a ocasião para uma nova versão possível do acontecimento”. (Despret, 1999, p. 328-330).

    Concordo que certas escolhas implicam em critérios que não podem ser colocados em palavras. Acrescentaria que muitas vezes a escolha consciente não é acompanhada pela ação. Por exemplo, quando um sujeito escolhe, com convicção, fazer um curso universitário em uma faculdade pública, mas não consegue se aplicar nos estudos para o vestibular, ou quando uma pessoa decide ser pontual, mas não consegue. Me parece que a ação que acompanha a escolha consciente é guiada por muitos critérios, conscientes ou não. Como lidar com esses impasses em um trabalho de Análise do Vocacional?


    Despret, V. (1999). Ces émotions que nous fabriquent. Paris: Les Empêcheurs de Penser en Rond-Seuil.

    ResponderExcluir
  2. Estamos de acordo com você, Juliana. =) Pensamos que tal potência se instala no momento de tomada de consciência da escolha e de nossa responsabilidade por ela. Só que nos parece que nas aulas não tem sido dada a devida ênfase à impotência e aos afetos negativos daí decorrentes, envolvidos no processo de escolha - como a angústia, a solidão, o sofrimento, o desamparo. Para buscar compreender a potência, não há que se negar esse lado doloroso da impotência, mas assumi-lo posititivamente, abrindo um espaço para o novo, pois só assim se funda a nossa singularidade.

    ResponderExcluir
  3. Lendo o que vocês escreveram fico pensando que talvez não exista mesmo possibilidade de traduzir todos os critérios de escolha em palavras, porém não tive a impressão que até agora se falou nisso como um objetivo, por outro lado acho que existe um imenso universo que pode ser traduzido em palavras. Escolher, por exemplo, para falar do sujeito uma divisão formada de uma ordem racional (e do dizível) e uma ordem dos afetos e das intuições, não é uma escolha que esteja absolutamente ligada a algo do indizível. Dizer também que o que insiste em escapar é a fonte de onde provém boa parte dos critérios de escolha e que esta seria localizada em uma “zona nebulosa” também é uma escolha. Outra escolha, por exemplo, seria dizer que aquilo que escapa é justamente o que faz questionar a escolha, pois é o que não cabe nas possibilidades que são apresentadas. Acho inclusive que o trecho citado da Clarice Lispector combina melhor com esta segunda perspectiva. Já no exemplo da boate, logo me perguntei, será que posso experimentar em relação a outra pessoa o que foi descrito como “um sentimento ambíguo de um certo charme contido da pessoa, ou de uma atração misteriosa , um olhar indefinível” no ônibus ou no trem? Por que escolher a boate para performar este tipo de escolha , será que estes critérios indizíveis gostam de ocorrer mais nesses lugares ? Por que?

    Outra questão que vocês apresentaram foi a da complexidade das escolhas que deve levar em consideração “constrangimentos concretos”. Vocês escreveram que não se pode: “trocar de faculdade indefinidamente, por exemplo, uma vez que se impõe aí uma série de constrangimentos concretos e, no limite , uma interdição fundamental , que é a morte , a finitude, a necessidade de conferir um sentido à vida , da qual decorre precisamente a urgência de fazer o que consideramos como melhor uso do nosso tempo.”
    Achei curioso a escolha dos termos: “sentido da vida” ,“urgência”, “o melhor uso do nosso tempo” e “morte”. Será que o sentido da vida está nas escolhas que nos são oferecidas para escolher ou será que podemos criar outros sentidos desviantes? É preciso urgência para escolher ou a urgência concorre justamente para escolher o que já está dado como escolha? Além disso, a urgência em considerar o melhor uso do tempo não seria uma questão bem ligada ao modo de produção capitalístico? Será a morte somente a finitude do ser biológico ou poderíamos também falar de uma morte em vida quando se aceita todas as possibilidades de escolhas dadas sem questioná-las abdicando da produção de novos sentidos?

    Atravessado por estas questões me pergunto se “obstáculo impossível de ser transposto” e “fracasso” não seriam conceitos construídos socialmente. E se não seria também o mesmo processo de construção que colocaria a angústia, o sofrimento, a solidão e o desamparo como lugares de impotência. Impotência de quem? De um indivíduo isolado que porta tais estados? Ou estes estados nos falam de algo mais, possibilitando a análise da rede formadora da subjetividade que atravessa este indivíduo? Neste sentidos tais estados não seriam portadores de potência?

    ResponderExcluir
  4. Em minha opinião esta discussão se aproxima bastante daquela realizada na aula passada, eu já estava sentindo falta deste caráter polêmico que permeia as disciplinas do Pedro. Discutir a escolha e suas implicações é bastante complexo, pois nos conduz a pensar um sujeito que é desta ordem. Assim, acredito que isto já nos garanta algum avanço, pois nos aproximamos de um ser que é histórico e sensível às transformações; que se implica em uma existência que o demanda responsabilidade e engajamento, em contraposição a um passado de explicações naturalizadas e deterministas. Considero ser o tema da escolha central em um processo de análise do vocacional. Tal tema envolve todos estes aspectos apontados, os quais muitas vezes são da ordem do afeto, daquilo que não foi racionalizado, ou fazem referência a constrangimentos concretos. Porém nem por isso precisam deixar de ser tematizados ou problematizados. O sujeito precisa se apropriar disto no sentido da ação e da promoção de uma condição autonomia e não no sentido de sua vitimização frente às contingências do mundo, que pelo que observamos nos modos de atuação do biopoder (medicalização e judicialização) não me parecem tão contingentes assim.
    Carla Freitas

    ResponderExcluir
  5. Reiterando a colocação da Carla, acredito que esta discussão em muito pode enriquecer nossa formação e a implicação nestes processos de escolha que de fato envolvem toda essa complexidade, mas que no final continua sendo uma implicação deste sujeito que está ali e que escolhe, mesmo que seja a escolha de não escolher.

    ResponderExcluir
  6. Também penso que diversos critérios necessários para que se façam escolhas, sejam elas simples ou não, como por exemplo a escolha do sabor do sorvete ou a definição do curso de graduação, podem ou não ser traduzidos em palavras. Isto é, seriam formados por aspectos dizíveis, e portanto claros/visíveis ao próprio sujeito e por aspectos subjetivos ainda indecifráveis. Ambos os aspectos poderiam influenciar nas escolhas, sejam elas banais provenientes do cotidiano ou não. Não acho que há um lugar específico que proporcione o surgimento de critérios ocultos do sujeito.

    Conforme apresentado e discutido em sala de aula, a partir de qualquer situação seriam construídas escolhas, apresentariam-se opções. Essa urgência em fazer o que consideramos como o melhor uso do tempo, evitando o seu desperdício é um “princípio” construído a partir de um viés histórico e econômico, característico da sociedade atual. Sendo o desviante dessa norma visto com maus olhos, e a ele seriam “imposto constrangimentos concretos”.

    A impotência e os afetos negativos provenientes de uma escolha não seriam considerados em uma nova tomada de decisão? A partir do momento em que contribuem para a formação da singularidade eles influenciam escolhas posteriores.

    ResponderExcluir